sábado, 1 de setembro de 2012

Solidão e convivência nos limeriques de Edward Lear

É característica dos limeriques de Edward Lear a criação de personagens solitários, que se destacam dos demais por sua condição ou hábito absurdo. Cada limerique é um microuniverso em cujo centro está o personagem absurdo e nada há mais que importe. Não há referências de tempo, não se fala em futuro ou passado. Não há possibilidades e nada fica em aberto. Uma vez que o nonsense é marcado pelo não-sentimentalismo, os personagens de Lear agem com total despreocupação, e não demonstram qualquer reação ao mundo exterior. O destaque deste personagem em relação ao mundo que os cerca às vezes é aumentado com a criação de um coro que repreende o personagem:

"Havia um velho senhor em João Ramalho
que vivia a dançar na ponta de um galho;
mas disseram: "Se espirrar,
a árvore vai se arruinar,
seu imprudente velho de João Ramalho"

(grifo meu)

Assim, um livro de Lear é um desfile de figuras bizarras que não se preocupam com sua condição. Além disso, são seres solitários que pouco se relacionam com os outros. Quando o limerique apresenta uma ação que exige um segundo ser, um outro, predominam animais no ocupação destes espaços, como aquele limerique do senhor que passava os dias ensinando música ao sapo, ou então desta jovem que protagoniza um dos meus limeriques mais queridos:

"Havia uma senhora lá em Malta
da qual era toda de prata a flauta;
tocava horas a fio
para os porcos de seu tio
a divertida senhorita de Malta."

Raros são os limeriques que sugerem a ideia de parentesco. Como exemplo, há o livro "Adeus ponta do meu nariz!"*, que reúne 90 limeriques traduzidos para o português. Deste total, descontam-se três limeriques que mostram o personagem principal e seus filhos (sendo que num deles a filha se casa e vai embora), e um limerique que apresenta um casal. Os demais descrevem figuras solitárias, mas não no sentido negativo da palavra. Solitários uma vez que se destacam da maioria, levando vidas bem diferentes dos demais sem que isso se configure num problema. Emana deles uma aura de indiferença. Curiosamente, os limeriques que apresentam casais trazem enredos trágicômicos (o que reforça a ideia de solidão nos textos de Lear), onde o sentimentalismo é substituído por uma passividade absurda ou então por um tom sádico, como nesses dois exemplos:

nonsense pictures 

There was an Old Man on some rocks,
Who shut his Wife up in a box:
When she said, "Let me out,"
he exclaimed, "Without doubt
You will pass all your life in that box."

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nonsense pictures
There was an Old Man of Peru,
Who watched his wife making a stew;
But once, by mistake,
In a stove she did bake
That unfortunate Man of Peru. 

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Buscar pistas sobre o predomínio de personagens solitários nos limeriques pode ser uma besteira, uma vez que são obras nonsense e o próprio autor garantia que nada procurava dizer com elas. No entanto, parece oportuno associar tal característica com a própria vida de Edward Lear, eterno viajante. Não teve filhos, nem esposas. Possuía muitos conhecidos, mas com poucos mantinha relações estreitas e presenciais. Seu principal companheiro foi Foss, seu gato. Edward Lear foi, como seus personagens, alguém singular, adquirindo a solidão de quem se destaca dos demais.
Para finalizar, deixo um limerique que a meu ver é diferente dos demais, e que na minha leitura é mais melancólico do que divertido. Ao invés de apresentar um "old man" com sua origem e sua característica ou condição absurda, temos no primeiro verso o surgimento de um "old man" sem local de origem, e que nos quatro versos seguintes executa uma ação comum (soar uma sineta/campainha não é absurdo). Há apenas o exagero (soa a campainha até que seus cabelos se tornem brancos). E para ser ainda mais singular, o personagem que executa a ação se põe à espera de alguém que o responda. Sem dúvida um limerique emblemático, que vai na contramão dos demais:

"There was and Old Man who said, "Well!
Will nobody answer this bell?
I have pulled day and night,
Till my hair has grown white,
But nobody answers this bell!"


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*os poemas em português deste post pertencem a "Adeus, ponta do meu nariz", tradução de limeriques de Edward Lear feita por Marcos Maffei. Editora Hedra, 2004.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

limericando


Havia uma estranha prostituta em Vacaria
Que nenhum cliente na esquina conseguia
Perguntavam: Cê faz programa?
“Não! Só boto os clientes na cama”
Aquela maternal prostituta de Vacaria

*

Havia um crítico de cozinha em Viçosa
que anunciou de forma escandalosa:
Chega de analisar chucrute,
Gosto não se discute!
E nunca mais resenhou nos jornais de Viçosa

*

Certa vez um jovem chamado Diego
Participou de uma sessão do Descarrego
Lá fez um amigo perneta
Que se disse filho do capeta
O que muito impressionou o jovem Diego

sábado, 11 de agosto de 2012

Um absurdo muito calmo - os limeriques de María Elena Walsh


No imaginário coletivo, o louco costuma se mostrar por meio de atos inusitados e extravagantes. Em muitas obras de ficção e humor, o louco é espalhafatoso, agitado, aquele que grita e quebra coisas. Representações assim reforçam a diferença que há entre as pessoas ditas loucas e as pessoas ditas normais. Mas a literatura nonsense está aí para tornar essa barreira cada vez mais imperceptível e confusa. Vem para plantar a dúvida: somos normais mesmo? O que é ser normal? Um bom exemplo desse nonsense é "Zoo Louco" (2011, Editora Projeto, tradução de Gláucia de Souza), livro de poemas da argentina María Elena Walsh (1930 - 2011), que pela primeira vez foi traduzida no Brasil.
O zoo louco de Walsh é uma coleção de bichos com feitio ou comportamento muito inusitado, contados em forma de limeriques, o gênero poético que é tema desse blog. Mas ao contrário de passar espanto ou agitação, os poemas apresentam as situações absurdas com muita calma, com ares de naturalidade:

"Uma vaca que usa colher no almoço
e que tem um relógio em vez de rosto,
que voa e fala inglês,
sem dúvida ela é,
uma Vaca estranhíssima, bem posto"

Toda essa calma mostra que Walsh aprendeu muito bem a lição do inglês Edward Lear, mestre do gênero que no século XIX apresentou, sem demonstrar uma gota de espanto, uma coleção de homens e mulheres bizarríssimas.  No entanto, os limeriques de Walsh têm um toque bem original.  Sua particularidade não está apenas ao versar sobre animais ao invés de homens, ou então no uso mais amplo do 5º verso (ao contrário dos limeriques de Lear, cujo quinto verso era muitas vezes um "fechamento" de conteúdo semelhante ao do primeiro. Vide aqui.). A originalidade desses poemas está, entre outras qualidades, nas imagens inusitadas que María Elena Walsh oferece para que o leitor experimente. Vejamos o limerique "Caso as cobras fossem tão gabolas", que propõe com muito humor o exercício de se pensar em cobras bem-vestidas e em pé, elegantérrimas:

"Caso as Cobras fossem tão gabolas,
se usassem calças, luvas, cartolas
e lenços de seda feitos,
não haveria jeito:
ficariam tão feias como outrora"

Há de se destacar, nessa edição da Editora Projeto (que é inacreditavelmente a primeira tradução da Walsh no Brasil, ela que tantos livros e canções infantis compôs), o trabalho da ilustradora Angela Lago, da qual sou fã, tendo já comentado outros trabalhos seus. Como se nota pela imagem da capa, Angela trabalha com muito humor a ideia de zoomorfismo/animalização que há nos limeriques do livro. Afinal, os bichos de Walsh costumam ter atitudes muito humanas: fazem discursos, tocam piano e usam quimono. Tomar os bichos de Walsh como metáforas para as atitudes humanas, algo como "A revolução dos Bichos", romance de G. Orwell, seria possível, mas também seria tornar sério e redutor demais algo que só quer ser puro e simples nonsense - e é nessa simplicidade que está sua riqueza:

"No fundo do mar, uma Toninha
com vestido de cauda e boininha,
que acham que se passa?
Nada, só fica em casa
chateada e sozinha na cozinha."




domingo, 1 de julho de 2012

There was an Old Man of Dumbree






"Havia um Velho Senhor do Canadá,
 Que ensinava corujinhas a tomarem chá;
A elas dizia, "Comer rato
 Não é certo e nem um barato,"
 Aquele amável Senhor do Canadá"

domingo, 18 de março de 2012

Os limeriques de Edward Lear


Sem passar em revista toda a biografia de Edward Lear (1812-1888), deve-se dizer apenas dizer que ele não é o criador dessa forma poética. Curiosamente, também nunca usou o termo limerick em seus livros. No entanto, é a grande referência do gênero, responsável por sua popularização ao redor do mundo. Lear não mexou na estrutura rígida do limerick, o que teria acrescentado ao gênero para ter ganho tanta fama? Sem dúvida o sucesso de seus poemas está na ironia refinada e no modo como concebeu um universo absurdo e charmoso, habitado por pessoas mais que peculiares. Pessoas com atos ou características inesperadas, que causam estranhamento, mas não tanto. Um absurdo cantado com delicadeza e calma, que o leitor aceita como humano, natural, como se dele fizesse parte.  

"There was an Old Man of Moldavia,
Who had the most curious behaviour;
For while he was able,
He slept on a table.
That funny Old Man of Moldavia."

212 no total, todos os limeriques se assemelham à medida que apresentam uma personagem e uma ação, funcionando como um miniconto. Na maioria deles, o personagem possui um hábito estranho, como no exemplo acima, que não possui qualquer explicação lógica, ou então uma característica física incomum, que leva a um comportamento absurdo:

"There was a Young Lady whose nose
Was so long that it reached to her toes;
So she hired an Old Lady,
Whose conduct was steady,
To carry that wonderful nose."

Antes de ser escritor, Lear foi pintor, desenhista de paisagens e pássaros (para ilustração de trabalhos de ornitólogos). E ele trouxe essa sua habilidade para os limericks, uma vez que criou uma ilustração para cada um. São desenhos tão irônicos e divertidos quanto os textos, que dialogam de tal forma com eles, que muitas vezes a impressão é de que os limericks não podem ser publicados sozinhos (como fiz ali em cima, por exemplo). Aqui, temos um bom exemplo disso:



"There was an Old Man who said, "How 
Shall I flee from this horrible Cow? 
I will sit on this stile,

And continue to smile, 
Which may soften the heart of that Cow."

Mais do que ilustrar a cena, o que constituiria redundância, os desenhos aumentam a carga de humor do poema, uma vez que também são irônicos e bizarros a seu modo. Nesses textos, não há intenção: o próprio Lear declarou que o único objetivo deles era ser nonsense. Não há entrelinhas, ele não quis dizer nada. No entanto, muitas coisas podem ser discutidas a partir da leitura dos limeriques. De algum modo, todos os seus limeriques carregam dentro de si atitudes e indagações humanas, relacionadas a medos, paranóias, desejos. A partir do momento em que apresenta atitudes absurdas, Lear nos confronta com as atitudes esperadas para aquelas situações, levando-nos a repensar nossas rotinas, nossos modos, nossa humanidade. Assim, ler Edward Lear é refletir sobre o que o ser humano tem de óbvio e tolo. E fazer isso rindo:



                                                    "There was an Old Man of the Nile,
                                                     Who sharpened his nails with a file,
                                                     Till he cut off his thumbs, 
                                                     And said calmly, "This comes
                                                     Of sharpening one's nails with a file!" 


sábado, 18 de fevereiro de 2012

Limeriques com sabor brasileiro


Lançada pela Demônio Negro, essa editora miúda que publica uns monstros pouco lidos, de sousândrade a juan brossa, "Minima Immoralia - Dirty Limerix" é uma coleção de limericks traduzidos e reescritos por Luiz Roberto Guedes. De uma infinidade de limericks anônimos escritos em inglês, Guedes traduziu alguns deles de forma bem livre, alterando os versos em nome da rima e do humor. O resultado é uma série de limericks com um pé na inglaterra e outro no brasil, todos universais, até porque a escatologia e a obscenidade, que estão presentes em todos esses poemas, estão em todo lugar:

Uma cachopa lisboeta
Nasceu com um par de bucetas.
E diz, sem vergonha,
Com o quê ela sonha:
"Um macho com duas cacetas".


São limericks imorais, desbocados e despreocupados, tanto na forma (Guedes não utiliza todas as tradicionais regras métricas) como na temática. Como todo bom fazedor de limeriques fesceninos, tá cagando e andando para quem vai ler:

Vem aí o Viagra futuro:
Em líquido. Se não der furo,
Logo os coroas
Dirão às patroas:
"Meu bem, me serve um pau-duro?"


Os estudos de Gershon Legman, um dos maiores especialistas em limericks, apontam que os limericks sujos, obscenos e escatológicos, começam a se multiplicar a partir do começo/meio do século XIX. Antes disso - e o limerick nasceu vários séculos antes disso, era sóbrio e sério como lembra Glauco Mattoso. Não foram limericks assim que consagraram Edward Lear, o autor mais famoso desse tipo de poema. Por isso, podemos até fazer uma divisão do limerick, como se houvesse dois jeitos de fazê-lo: o sujo, provocador e sarcástico; e o limpo, o leariano, marcado pela ironia fina e pela discrição. Tratam de mundos diferentes, e ambos agradam (ou desagradam) a seu modo:

Ao chá, a duquesa Edvígia
M'indagou: "Tu peida quando mija?"
Com garbo, fui à carga:
"Tu arrota quando caga?"
E senti que ganhei essa rixa.


Três nomes se destacam na produção de limeriques brasileiros: Bráulio Tavares, considerado o pioneiro, Glauco Mattoso e o Luiz Roberto Guedes (há ainda os autores de limeriques infantojuvenis, mas isso eu gostaria de separar, e tratar noutro post). E o "Dirty" é o único livro que conheço que seja apenas de limericks, por isso discordo de quem afirma que o limerick é uma forma tão conhecida como o haikai. Creio que por tratar de temas tabus, de picas e xanas, o limerick consegue ser uma forma poética super simpática, mas pouco divulgada por aqui.
Senhoras e senhores, limeriquemos.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

"making toast at the fireside,
 Nurse fell in the grate and died. 
And, what makes it ten times worse,
 all the toast was burned with Nurse"


Col. D Streamer


In: A Nonsense Anthology, Collected by Caroyn Wells

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Limerick é sempre nonsense?

A Roberta Bittencourt, essa loira oxigenada, fez uma crítica muito interessante sobre o limerick que aparece no último post. Na verdade, não é nada interessante, mas é oportuna, uma boa ocasião para observar que nem todo limerick faz uso do nonsense. (Na verdade isso está subentendido no post anterior, né Roberta). O nonsense é apenas um dos traços do humor inglês, e ele encontrou no limerick uma forma ideal para se manifestar. Mas é claro que o limerique não é obrigatoriamente nonsense (embora eu pense que os melhores exemplares o são). Tem-se essa impressão devido à influência do sucesso de Edward Lear, o autor mais famoso desse tipo de poema, que abusou da comicidade do absurdo em seus limeriques. À Lear se deve a popularização dessa forma ao redor de mundo, influenciando autores de outros países que viriam a ganhar fama com esses poemas, como Tatiana Belinky no Brasil, Gianni Rodari na Itália ou María Elena Walsh na Argentina.

O limerick inglês celebra o absurdo, o inoportuno, o boçal, o sarcástico, o ridículo, qualquer coisa que não seja o esperado:

"There was a young fellow from Clyde
Who once at a funeral was spied.
When Asked who was dead,
He smilingly said,
"I don't know. I just come for the ride"

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Voltando ao comentário da Roberta, é bem possível abrir alguns caminhos para o trabalho com limerick em sala de aula. Pode-se optar por reaproveitar o consagrado modelo leariano, de fácil assimilação [favor não confundir com fácil execução], e que funciona quase como um miniconto:

"There was an Old Man of Cape Horn,
Who wished he had never been born;
So he sat on a chair,
Till he died of dispair,
That dolorous Man of Cope Horn."

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Ou quem sabe, numa outra proposta bem mais aberta e, a meu ver, mais difícil, tem-se a ideia de trabalhar com "limericks desagradáveis": poemas que debochem, falem mal de pessoas, coisas ou lugares, ou então poemas que apresentem situações ousadas, estranhas, rídiculas.
que tal seguir a pista de Luiz Roberto Guedes? [mais adiante, falarei mais sobre ele]:

"Um perfumista argentino
Tinha o olfato tão fino,
Que distinguia o cheiro
De um peido de lixeiro
De um leve pum feminino"

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e aí?

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O que é um limerick?

Limerick é uma forma poética, originária da língua inglesa. Muitas são as suposições acerca da época e o local de criação desse tipo de poema, mas é certo que seu desenvolvimento principal ocorreu no seio das culturas irlandesas e inglesas, pois é nessas culturas que o limerick ganha status de folclore, obras-símbolos das culturas populares desses países

O limerick pode ser descrito como um gênero poético-humorístico, visto é que sempre um poema em versos, que obedece certa estrutura fixa, ao mesmo tempo que possui o fim de fazer humor. O limerick faz troça, ironiza, conta um causo bizarro, sempre com a intenção de fazer sorrir. É essencialmente uma anedota em verso, diz Baring-Gould.

Aqui, um exemplo de limerick de autoria anônima:

"There once was and old man of Esser
Whose knowledge grew lesser and lesser,
It as last grew so small
He knew nothing at all,
And now he's a college professor"


O sucesso do limerick nas culturas de língua inglesa reside provavelmente na sintonia entre a língua e principalmente o humor inglês (que vai da ironia polida ao nonsense escrachado) e a estrutura do limerick.
O poema sempre possui cinco linhas e apresenta um esquema rímico do tipo A-A-B-B-A.
Há também regras quanto às sílabas poéticas.
Mais adiante, teceremos mais considerações acerca da estrutura, dada sua importância para esse trabalho.

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Para consulta sobre as possíveis origens do limerique: The Lure of Limerick, de William S. Baring-Gould.

Este blog

A intenção deste blog é divulgar o limerique, forma poética originária da cultura inglesa, frequentemente marcada pelo nonsense. Espero também apresentar propostas para o uso do limerique nas aulas de Língua Portuguesa e Língua Inglesa.