domingo, 10 de fevereiro de 2013

"Viagem numa peneira" e o público da literatura nonsense


Viagem numa peneira, de Edward Lear.
Editora Iluminuras, 2012.
Tradução e apresentação de Dirce Waltrick do Amarante.

Um dos principais méritos dessa mais recente tradução de Edward Lear para o português é a opção de apresentar uma antologia de toda a obra nonsense do autor, não se limitando aos limeriques, que são as obras mais divulgadas dele. Além deles, o livro também traz, pela primeira vez (em livro) ao público brasileiro, a tradução de alguns poemas famosos de lear, como The Owl and the Pussy-cat e The Jumblies (poema do qual foi retirado o título desta antologia), e também um pouco da botânica nonsense e dos abecedários do autor. Provavelmente devido à escolha de apresentar partes de toda a obra de Lear, não foi dessa vez que tivemos todos os limeriques dele traduzidos para o português: o livro traz apenas 45, de um total de 230 escritos pelo autor.

O projeto gráfico da Iluminuras é lindo e a tradução, feita por uma professora da UFSC, é muito boa, visto que os limeriques traduzidos apresentam uma linguagem leve e divertida, sem nenhuma esquisitice verbal aparente, fazendo jus ao humor e à precisão leariana. Alguns tradutores de Lear, como Valêncio Xavier e Vinícius Alves (papos para outro post), optaram por "abrasileirar" os limeriques, incutindo neles o humor e as variações linguísticas típicas do Brasil, indo além da aparente solenidade do humor britânico. Particularmente, prefiro a escolha de Dirce, que mantém o tom sério, algo que a meu ver reforça positivamente a carga nonsense do poema:

Havia uma moça cujo nariz comprido
Chegava-lhe bem abaixo do umbigo;
Contratou então uma criada, senhora bem-comportada,
Para levar seu formidável nariz comprido.

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 No prefácio do livro, intitulado "Literatura Nonsense: só para crianças?", a tradutora destaca a especificidade do gênero nonsense e as diferentes leituras que os estudiosos fizeram para tentar captar as leis desse gênero que parece escapar à qualquer definição pontual e que consegue agradar ao público adulto e ao infantil. É válido reproduzir a opinião de Elsie Leach sobre Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, que também se aplica à obra de Lear: "defrontado com Alice no país das maravilhas, o leitor adulto não sabe exatamente o que pensar. Ele percebe que é um trabalho de imaginação original, com significado tanto para adultos como para crianças."(pág. 17)

É preciso que o texto tenha uma riqueza muito particular para conseguir esse efeito duplo. Ao mesmo tempo que agrada as crianças pela apresentação de situações nonsense e pelas brincadeiras e jogos verbais, os textos nonsense de Lear e Carroll também agradam os adultos. Pelos mesmos motivos, penso, uma vez que os adultos adoradores de Lear são pessoas que conservam o gosto pelas brincadeiras com a língua lá da infância. Mas a estes motivos se acrescenta um muito importante: as reflexões que o texto nonsense provoca em seus leitores mais experimentados. Uma reflexão linguística, atrelada ao complexo processo de produção de sentido, que durante a leitura do texto nonsense é desnudado diante do leitor, como se fosse uma engrenagem que, ao perder uma peça, desmonta-se. E também uma reflexão (que na verdade também é dependente da linguagem, e por isso linguística também) sobre a vida, uma vez que o texto nonsense, por meio da linguagem, desconstrói significados, imagens, ideias, hábitos. Já falei um pouco mais sobre os limeriques e a vida aqui.

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Diante do fato de que o texto nonsense pode agradar à crianças e adultos, as editoras brasileiras costumam optar por edições híbridas. Vemos então livros com projetos gráficos repleto de cores e ilustrações que visam sobretudo o público infantil, ao mesmo tempo que são dotados de textos críticos, notas de rodapé, prefácios e ensaios que dificilmente interessarão às crianças. A harmonia é possível, como mostra esse "Viagem numa peneira": bonito e colorido projeto gráfico, leves textos iniciais e finais sobre a vida e obra de Lear e, entre essas coisas, o humor nonsense para todos.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Minha vida é um limerick

No final da última postagem do blog, fiz uma tímida aproximação entre o comportamento unusual dos personagens dos limericks com a vida pessoal de Edward Lear, marcada por longos períodos de solidão e reclusão. Essa semana encontrei essa fala de Lear (a fonte da qual a retiro não deixa claro se o trecho é oriundo de uma carta ou de alguma forma de um ensaio):

"Você pode sentir-se estranho e diferente, e podem existir certas coisas que o anulem, mas num mundo imaginário onde as pessoas têm narizes e pernas singulares e os modos mais estranhos de expressão, onde elas procuram seres excêntricos com quem possam se identificar e onde encontram ainda a bondade e espontaneidade, você provavelmente nunca se sentirá só." 

Fica nítido, então, o que era apenas uma suposição: a obra de Lear é uma forma que o autor encontrou para responder a algumas de suas próprias necessidades, refletindo muito de sua vida pessoal.